segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A Natureza do Escorpião

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Um escorpião quer atravessar um rio, mas não sabe nadar. Pede carona a um sapo. Desconfiado, o sapo recusa-se a carregá-lo nas costas. O escorpião insiste. "Não posso", diz o sapo, "por que tu vais me picar". "Deixa de ser burro, se eu te picar, morremos afogados os dois". O argumento faz o sapo ceder. No meio do rio, ao sentir o fogo do veneno nas costas, o sapo, perplexo, ainda tem tempo de perguntar por quê. "Não consegui resistir à minha natureza", explica o escorpião.
(2002, p.17-18)
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Dentre as tantas palavras possíveis de se utilizar para descrever O Escorpião da Sexta-feira, de Charles Kiefer, instigante com certeza é uma delas. Alguns livros nos causam tédio, outros nos fazem ficar pensando no enredo por cinco dias ou mais depois de ler a última página. Esta obra é daquele tipo que nos leva a ficar de olhos arregalados durante toda a leitura, e quando chegamos ao final da história, permanecemos pensando no desfecho por dias!
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O início da história se dá em uma noite comum de Porto Alegre. Nela, Antônio – nosso protagonista, busca uma acompanhante. A companhia encontrada é uma prostituta chamada Maura que, com pouco esforço, ele consegue levá-la para casa. Para quê? Ora, caro leitor, use sua imaginação!
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Se você pensou “naquilo”, errou.
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Charles Kiefer é um escritor gaúcho natural de Três de Maio. Tem trinta livros editados e ganhou por três vezes o Prêmio Jabuti de Literatura, entre outros. Mesmo com títulos lançados por editoras regionais, obteve, no total, mais de 300 mil volumes vendidos. A reconhecida qualidade literária de seu trabalho em romances, contos , ensaio literários e poesia, levou a Editora Record a contratar a reedição de todos os seus livros, a partir de 2006. Há vinte anos dirige uma prestigiosa oficina literária, sendo o formador de uma leva de bons autores do Rio Grande do Sul.
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Sua obra tem sido adaptada para o cinema e para o teatro, como O chapéu, filme dirigido por Paulo Nascimento; Dedos de pianista, dirigido por Paulo Nascimento; Escorpião da sexta-feira, peça de teatro, e Quem faz gemer a terra, peça de teatro. Esta última já foi encenada mais de setenta vezes, inclusive na França, Suíça e Polônia. Tem livros editados na França e em Portugal. (dados extraídos de http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Kiefer).
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-Tu não gostas de mulher?, Maura indaga. Desiste de retorcer-se a minha frente.
-Claro que gosto, respondo.
-Então, o que eu preciso fazer pra te deixar de pau duro?, pergunta, subitamente cansada. Volta a sentar-se ao meu lado, no sofá.
-Um pouco mais de perversão, eu digo.
-Não entendi, ela responde e enxuga o suor da testa.
-Me deixa eu te amarrar, deixa?
-Vamos ver. Se eu me apaixonar por ti, deixo.
-Luísa gostava de ser amarrada, vendada, sadomizada.
-É que ela te amava.
(...)
-Quem é Luísa?
-A primeira, eu digo. Deita aqui. (2002, p. 29-30)

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É a partir deste diálogo com Maura, caro leitor, que Antônio, um sujeito frio, calculista e aficionado por escorpiões começa a contar a sua história. O início dela é parecido com o de muitas pessoas. Foi para a cidade grande, vivia sozinho, sustentava-se com o seu trabalho. Era um sujeito inteligentíssimo, com gostos excêntricos: condimentos, músicas antigas e, em especial, escorpiões. Certa vez conheceu Luísa, a mulher que o arrastou num turbilhão de desejo e paixão.
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Luísa era uma pessoa que alternava estados de euforia e depressão com "a rapidez dos ataques dos escorpiões". De acordo com Antônio, foi ela quem o fez abandonar horas de estudo e meditação por paixões altamente instáveis. Começaram a namorar.
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A personalidade de Antônio era representada metaforicamente pelo seu primeiro escorpião, chamado Gandhi, que era um aracnídeo manso e não venenoso. Luísa odiava escorpiões, a ponto de em um momento de loucura esmagar o coitado. Esse evento, somado a turbulentas paixões que atormentavam a alma de Antônio, em especial os ciúmes, já que Luísa era uma pessoa, digamos, “liberal por demás”, fizeram com que o nosso protagonista canalizasse todos seus sentimentos de forma assustadora. Essa segunda fase de Antônio pode ser identificada através do seu segundo escorpião, chamado Gengis Khan, que era um escorpião extremamente venenoso e agressivo.
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A história é contada por Antônio, e nela Luísa é o “monstro” responsável por tudo de ruim que passa a acontecer na sua vida. O sofrimento torna-se tão grande a ponto de servir de desculpa para as ações que se seguem. Não, caro leitor, Antônio não se suicida por amor! Este seria um conto romântico se esse fosse o desfecho. Ao invés de morrer por amor, Antônio começa a matar por prazer. Luísa, o estopim, foi sua primeira vítima.
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Apanhei um frasco de óleo de amêndoas no armário, encharquei as mãos e passei-as nos seus ombros, nas suas costas, nas suas nádegas.
-Ai, assim tu me deixas excitada.
Ignorei a provocação e continuei a massagem lustral, como se a preparasse para o sacrifício. Esfreguei-a por longo tempo, até que a pele absorvesse a fina camada de gordura vegetal. Depois, tomei-a nos braços. Era leve como uma criança. Carreguei-a até o quarto, escolhi um conjunto de calcinha e sutiã pretos, meias de nylon e cinta-liga, e o vestido de cetim azul.
-Foge de mim – implorei.
-Agora, que estás tão querido?
Luísa confundia a premeditação paciente com carinho, ternura. O escorpião, antes do ataque, aquieta-se, distende os pedipalpos, abaixa a cauda, mimetiza-se com o ambiente, para que o inseto não tenha a menor chance de reação. (2002, 113-114)
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Luísa, no caso, era o inseto.
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Em síntese, O Escorpião da Sexta-feira é um livro de leitura agradável, com linguagem simples, possuidor de personagens que, no ápice de suas “loucuras”, tornam-se extremamente atraentes, por serem influenciados por causas bem cotidianas, o que – em certos momentos – faz-nos parecer “Antônios” ou “Luísas”. Recomendo o livro.
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Vocês devem estar se perguntando o que aconteceu com Maura, a prostituta para a qual Antônio contou toda sua história. Bem... os escorpiões são calmos, metódicos e pragmáticos. Durante o dia, deprimidos pelo excesso de luz, dormitam escondidos em pequenos buracos, debaixo de pedras, sob a casca de madeiras apodrecidas. À noite, revitalizados e famintos, partem em busca de insetos, aranhas e outros escorpiões. Atacam sempre da mesma forma... (...) (2002, p. 13) Antônio também, é de sua natureza.
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Bibliografia utilizada:
KIEFER, Charles. O Escorpião da Sexta-feira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2002.
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Charles Kiefer:
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Comentário de Volnyr Santos sobre o Escorpião da Sexta-feira:

2 comentários:

Natália Flores disse...

jorgeee!
tu tem esse livro pra me emprestá??

;D
bejaum

Anônimo disse...

Perfeito.. *-*
A cada página, surge um gostinho de "quero mais".
Muito bom mesmo.