sexta-feira, 5 de outubro de 2007

A autoestrada (ou será a vida?)

Para finalizar a semana, um prato especial: um conto do impressionante escritor argentino Julio Cortázar. O conto “A Autoestrada do Sul” é uma narrativa incrível em que muitos carros ficam presos em um grande engarrafamento a caminho de Paris. Faz calor, frio, chove... as personagens se conhecem e se relacionam nesse espaço que é tudo o que elas têm e onde a duração do tempo não interessa. Apesar da situação fantástica, a sensação é de extrema realidade. Os ocupantes dos carros formam grupos, elegem líderes e se preocupam com as miudezas do dia-a-dia, como conseguir água e comida. No fim, a fila começa a se movimentar, em velocidade crescente, e as pessoas que formavam aquele microcosmos se separam; os motoristas, que antes se conheciam, agora não se olham, não se relacionam. 

Em um primeiro olhar, podemos perceber a crítica à sociedade ocidental do século XX, onde os relacionamentos são efêmeros e a vida passa muito rápido para que possamos perceber e conhecer as pessoas realmente. A autoestrada é a vida, nela estabelecem-se os passos e as mudanças da sociedade, a qual caminha a passos cada vez mais frenéticos. A personagem principal – o engenheiro do Peugeot 404 - sonhava chegar a Paris e ter tudo que a cidade poderia oferecer, mas, quando os carros começaram a se movimentar e seus companheiros foram se afastando, ele passou a sentir uma profunda nostalgia por tudo o que aconteceu antes. A inevitável marcha que os separaria é o devir da humanidade e se confunde com devir do próprio indivíduo. 

Um conto de Cortázar, porém, sempre revela muitas nuances: a autoestrada do Sul é também a América Latina. Ela pode ser vista como uma metáfora dessa parte do continente que sonha com tudo que a vida moderna pode oferecer, mas, ao mesmo tempo, sente uma nostalgia enorme de tudo o que deixou - e continua deixando - para trás. A velocidade que permeia a nossa vida e o desespero de ver quem – ou o que - se ama se afastar são as últimas sensações do conto. O final não é o fim, mas sim o caminho inexorável onde deixamos rastros e levamos lembranças, sempre seguindo em frente. 

Foi um texto “pesado” para uma noite de sexta-feira, eu reconheço, mas quem quiser conferir o que eu escrevi – ou ler o conto completo e descobrir mais coisas nessa e em outras narrativas de Cortázar – não vai se arrepender. Eu garanto.

Para ter um “gostinho”, é só clicar em http://www.releituras.com/jcortazar_menu.asp e ler outro conto de Cortázar. 

Ah, “A Autoestrada do Sul” faz parte do livro “Todos os Fogos o Fogo”, o primeiro livro lançado pelo autor depois daquela que é considerada sua principal obra: “O Jogo da Amarelinha”. Até a próxima sexta - será que o meu texto vai ser mais condizente com o dia? Veremos...

Nenhum comentário: