segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

A Arte de Flanar*












João do Rio
Charge: J. Carlos
Revista Careta: 1910



A rua continua, matando substantivos, transformando a
significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que
inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons
futuros. (...) É preciso ter espírito vagabundo, cheio de
curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo
incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur
e praticar o mais interessante dos esportes - a arte de flanar. (...)
Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, (...) ter o
vírus da observação ligado ao da vadiagem. (...) É
vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com
inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o
desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas
necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas.

Trecho de A Alma Encantadora das Ruas, de João do Rio.



Prezados leitores, convenhamos! Em geral estamos tão absortos em nossos deveres que nem percebemos o que ocorre por aí. Nossas excessivas preocupações dão sentido àquela estupidez de achar que o nosso umbigo é o centro do mundo. Em A alma encantadora das ruas (1910), Paulo Barreto (conhecido como João do Rio) faz a crônica boêmia da cidade do Rio de Janeiro e de seus tipos populares no final do século XIX. Trago essa obra para a contemporaneidade porque hoje em dia parecem faltar flâneurs, no nosso (aparente) pacato dia-a-dia.

Quando caminho pelas ruas de Santa Maria, o que vejo no semblante da maioria das pessoas é um olhar taciturno com a cabeça baixa, ou ainda com o olhar fixo em alguma coisa para além de onde a pessoa está, provavelmente devido a muitas preocupações e obrigações. Foi por causa disso que perdi meu velho costume interiorano de dar "bom dia" às pessoas. Cadê o nosso "espírito vagabundo"?


Minha geração (tenho 22 anos) foi criada sob ditos do tipo “come o fígado do teu próximo senão ele comerá o teu. Seja o primeiro! Porque, se você não for, não passarás de uma doméstica ou de um gari”. O engraçado é que nos pedem para sermos caridosos e solidários com o próximo, mas nos criaram individualista e materialistamente. É óbvio que esses valores não são equivocados, claro que não. A auto-suficiência não será completa se não houver independência econômica. Essa é a base para se viver nos moldes atuais. Como dizia um conhecido, "até o mais vermelho dos marxistas quer, no fundo, virar burguês". Mas isso não é a garantia para se viver bem. Acredito que o mal-entendido esteja no “viver bem”.


Entretanto, ainda há flâneurs em Santa Maria, tenho certeza. Todos aqueles senhores que têm o cabelo esbranquiçado pela geada dos anos, sempre presentes no Calçadão pelas manhãs, são um bom exemplo. Onde mais podemos encontrá-los? Suspeito que em qualquer boteco barato da cidade. Deve ser por isso que me sinto tão faceiro ao ir com meus excelentíssimos colegas de faculdade a esses recintos.


Aluno universitário, eis outra estirpe muito adepta à arte de flanar. Analisar o modo dos outros, os próprios, os acontecimentos da política nacional e internacional, os esportes, os eventos da cidade, alguns conceitos filosóficos, sociológicos e antropológicos, gibis, filmes, músicas, personalidades, explanar algo sobre as mulheres (elas são sempre uma fonte muito rica de comentários). Sobre as mulheres já dizia o glorioso Erasmo de Roterdã (1466-1536) no seu Elogio da Loucura: "Antes de tudo, têm elas o atrativo da beleza, que com razão preferem a todas as outras coisas, pois é graças a esta que exercem uma absoluta tirania mesmo sobre o mais bárbaro dos tiranos".
Enfim, com uma(s) garrafinha de cerveja um universitário torna-se um exímio representante da classe dos flâneur.


João do Rio era jornalista, e já no início do século XX percebia que essa prática de se "admirar e reparar as coisas" era fundamental para a atividade jornalística. Uma das características do jornalismo atual é a pouca disponibilidade de tempo. Como dizem por aí, a famosa deadline não perdoa! Se o tempo é tão escasso, como observar de maneira eficaz o que acontece na nossa volta?


Para finalizar, eu gostaria de dizer que doces são as tardes de um flâneur. Alguns chamam estes intrépidos varões de vagabundos, mas na verdade são esses passeios ociosos e discussões despreocupadas que permitem aos indivíduos assimilar conceitos adquiridos nos mais variados ambientes. Até os gregos sabiam que para o exercício intelectual é necessário tempo, isso há mais de dois mil anos.


E então, acompanham-me a um bar para jogar conversa fora?




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*Passear ociosamente; vadiar.

Sobre João do Rio: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_do_Rio

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