Outro dia certo professor indicou um conto de Humberto de Campos durante uma aula de Laboratório de Jornalismo Impresso III. Em O Monstro, a dor e a morte teriam tentado participar do processo de criação, ao dar vida a um ser “plagiado da obra divina”. Mesmo diferente de tudo que já fora visto, ele possuía reminiscências dos outros seres. Tal ser alarmou a Criação.
Dentre as especulações sobre o porquê disso, uma das possibilidades foi a de que a dor e a morte não costumam participar do processo de criação. Os debatedores - mesmo inseguros sobre o que diziam - explicavam que a morte e a dor seriam coisas ruins, contrárias à vida e àquilo que é considerado bom. Por isso, então, que um ser criado a partir delas seria rechaçado por aqueles naturalmente concebidos.
Algumas inquietações surgiram então a respeito disso. Será que a dor e a morte realmente são vilãs? Será mesmo que o seu único objetivo é afastar o homem daquilo que ele procura (a felicidade, por exemplo)? Quais são os seus papéis? São questões difíceis de serem respondidas (se é que não são impossíveis). No entanto, podemos fazer aquilo que todos costumam fazer quando não conhecem algo: especular.
Sabe-se que toda e qualquer criação tem por fim a excelência. Faz sentido. Afinal, aquilo que é gerado sobrevém graças a um ato de amor e dedicação, desde o títere produzido pelo seu artífice até a concepção de um ser. A diferença é que no primeiro caso o produto é produto de algo que também é criatura, sendo, dessa forma, potencialmente perfeito, mas refletindo em ato as imperfeições do seu criador; a segunda situação ilustra o ato que permite que a natureza continue seu ciclo. Mesmo que seja quase impossível decifrar esse movimento (já que somos criaturas limitadas), uma coisa é certa: a natureza sabe o que faz.
E qual é o papel da dor e da morte na criação? Nenhum. A explicação está na observação da própria natureza. Ela revestiu o processo de concepção com a veste do prazer, e agraciou o seu produto com a vida. Tudo isso para ter os seus desígnios atendidos.
Enganam-se, no entanto, aqueles que crêem que a morte e a dor foram enganadas. Assim como as outras criações, elas também servem aos propósitos da natureza. Elas não erram, e também não se enganam. Elas não criam, mas agem naquilo que foi criado. E elas não são boas ou más, como o homem costuma rotulá-las.
O homem caracterizou a dor como uma afecção negativa, definindo-a como algo oposto ao prazer. Enquanto que o prazer seria o prêmio pelo bom emprego dos esforços humanos, a dor seria o castigo pelas más ações. Suas mãos, no entanto, não servem simplesmente para magoar os corpos dos seres humanos; muito pelo contrário, ajudam a edificar o seu espírito. Seu toque é frio e triste, mas, durante a vida, é graças a ele que se aprende a dar valor às coisas que realmente valem o sacrifício. “A verdadeira medida de um homem não se vê na forma como se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas em como se mantém em tempos de controvérsia e desafio” – disse certo Luther King Jr. E a dor está nesses tempos de medida sempre à espreita, tomando em seus braços todos aqueles que estão em dificuldades.
O caráter de alguém amadurece quando é posto a prova, seja na observação de um ato injusto, ou ainda no sofrimento alheio, ou ainda na perda de uma pessoa querida. Como viver bem? Normalmente essa pergunta é empregada a si mesmo somente quando se está sofrendo. Sem falar na grande fonte de inspiração que ela é. Obras literárias, músicas... Enfim, são poucas as entidades que rendem tantos bons produtos quanto a dor.
Felicidade? Alegria? Bonomia? São os fins últimos de todas as nossas ações, como já disse o velho Aristóteles. Afinal, tudo o que se faz é com o intuito de ser feliz. Mas para alcançar tais objetivos, o homem necessita passar por uma jornada solitária para definir quais são as condições e escolhas necessárias para tal. A dor é a sua fiel companheira nesse percurso.
Outra injustiçada, representada sempre em vestes negras e com uma grande foice na mão é a morte. É o seu sopro que apaga a luz oferecida pela natureza a todos os seres no momento da criação. Dela, muitos tentam fugir, seja não pensando na sua existência, seja ignorando a velhice e tentando agir como um gurizote, por mais que geada dos anos cubra de branco os seus cabelos. Eles Ignoram que a natureza colocou-a no fim do percurso de todo ser não para castigá-lo, mas porque ela necessita disso para continuar seu ciclo. “Reparai que somos sábios se seguimos a natureza como um deus, curvando-nos às suas coerções. Ela é o melhor dos guias”, observou Cícero a seus contemporâneos. Disse ainda ele, “Aliás, não seria verossímil que, tendo disposto tão bem os outros períodos da vida, ela se precipitasse no último ato como o faria um poeta sem talento. Simplesmente, era preciso que houvesse um fim; que, à imagem das bagas e dos frutos, a vida, espontaneamente, chegada a sua hora, murchasse e caísse por terra. A tudo isso o sábio deve consentir pacificamente. Pretender resistir à natureza não teria mais sentido do que querer – como os gigantes – guerrear contra os deuses”.
Saber que um dia ela virá desempenhar seu papel não deve ser motivo de tristeza e de medo, pois é graças à ciência da sua inevitabilidade que o homem busca viver da melhor forma possível o tempo que lhe foi dado. É possível que um imortal de 800 anos não conseguisse aproveitar mais do que um homem que vivesse apenas 80, ciente que seu tempo acabaria um dia.
Tânatos era a personificação da morte na Mitologia Grega. Diz-se que Tânatos nasceu em 21 de agosto, sendo a sua data de anos o dia favorito para tirar vidas. (fonte: Wikipédia)
Autor da imagem desconhecido.
Sobre ela, os gregos conjeturavam que era impossível saber se existe algo após o seu abraço. Mesmo acreditando no Hades, sua maior preocupação era viver bem o tempo que lhes fora dado e, no final do percurso, ficar tranqüilo por saber que foi possível participar do ciclo natural e obedecer aos desígnios da natureza.
Ter consciência de que, cada uma a seu tempo, a dor e a morte fazem parte da existência humana permite que o indivíduo valore ainda mais o tempo que lhe é disponível; busque a melhor maneira de aproveitá-lo. É por isso, talvez, que o verdadeiro sábio vislumbra o amanhã sempre com tranqüilidade, e aproveita cada fase da sua vida da melhor maneira possível. Isso é ser Homem. E é essa a mensagem que os gregos quiseram passar ao eternizar a máxima “tenha coragem de ser homem e não queira ser um deus”.